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sábado, 20 de junho de 2009

AMAR E DESAMAR, OU ARQUITETURAS DE ABANDONAR

http://www.youtube.com/watch?v=1-Ysl5pbPGQ


[Veja o video e leia o texto, ou leia o texto e veja o video, ou faça isso tudo junto] Texto apresentado no III Coloquio Internacional de Educação e Contemporaneidades, no dia 19 de junho de 2009 - Corpografias

Amar

Que pode uma criatura senão,senão entre criaturas, amar?amar e esquecer,amar e malamar,amar, desamar, amar?sempre, e até de olhos vidrados, amar?Que pode, pergunto, o ser amorososozinho, em rotação universal, senãorodar também, e amar?amar o que o mar traz à praia,o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?Amar solenemente as palmas do deserto,o que é entrega ou adoração expectante,e amar o inóspito, o áspero,um vaso sem flor, um chão de ferro,e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.Este o nosso destino: amor sem conta,distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,doação ilimitada a uma completa ingratidão,e na concha vazia do amor a procura medrosa,paciente, de mais e mais amor.Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossaamar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(ANDRADE C. D., 1983, p. 262)


Toda casa pode querer separar-se, como um casal, que se deixa, um abandona o outro, desamar. O sofrimento por desamor é como a flechada do cúpido – a criança bochechuda, armada com arco e flecha, e com os olhos vendados – acertando um amor cego, pelo equivocado ou pelo correspondido. Talvez por isso se expliquem a adoração por determinadas arquiteturas e o asco por outras, a patrimonialização ou o abandono. Assim como Freud comparou o momento do amor com a hipnose, e por isso com certo estado de loucura transitória.
Porque dói tanto o abandono amoroso? Talvez porque projetemos inconscientemente nossas expectativas, nossas idealizações junto ao ser amado. Quando abandonamos uma arquitetura estamos perdendo um pouco de nós mesmos. A energia que antes depositávamos naquele edifício, esta em queda livre, e acaba por se converter em dor, solidão ou angustia. Depois, desse tempo, já reterritorializados poderemos então depositar nosso amor, mas primeiro é preciso lamber as feridas e retomar a energia, para que as forças de potência amorosa surjam novamente.
Mas, lembrando Schopenhauer, o amor não é cego, ele tem algo de animal, de perpetuação das espécies. Mesmo existindo diversas formas e amar e desamar. O amor a família, aos amigos, ao trabalho, aos estudos, as bens matériais, as arquiteturas. E muitos que sofrem pelo desamor de seus familiares, ou por suas perdas no trabalho ou não queiram tal morada. Todo esse sofrimento amoroso é o que da forças e transforma em maior medida as coisas, a própria arquitetura.
O amor e o desamor é um momento de loucura, andam juntos e separados aos mesmo tempo, todo o mundo real se apresenta sob sentidos diferentes, tudo se enche de paixões e indiferenças. Loucos de amor, embriagados por alguns instantes, novas linhas de fuga se apresentam, desaparecemos na existência do outro, impregnados por um sentimento inalcançável.
É um amor fati, inevitável, amor ao justo e ao injusto, o próprio amor e o desamor, indiferente ao sofrimento. Nada é futuro, nem passado. É algo incondicional a vida, mesmo no que ela tem de mais estranho, de mais terrível, de mais difícil de ser enfrentado.
Amor fati é uma atitude estética diante dos abandonos, um mundo de transformação de dor em beleza, de alegria em arte. Não significa que não possa haver um pessimismo diante da vida, de um abandono, mas esse ceticismo é pensando por Nietzsche como um pessimismo da força, ou seja, um pessimismo afirmativo, inconformado e, sobretudo, um pessimismo destruidor e, ao mesmo tempo, criador.
Em Carlos Drummond de Andrade, encontramos a tradução do peso em leveza, do inabitado em habitado, é o que podemos chamar de amor fati, um amor que ama ate o ódio, um amor que ama até a falta de amor.
Na estética de Nietzsche, a arte e, no nosso caso, os abandonos, são um modo de intensificar a vida em todos os seus aspectos, desde os mais dolorosos até os mais lúdicos e prazerosos. A arte agradece ate mesmo o que há de feio, grosseiro e incompreensível na vida, agradece e torna bela até a morte, a degradação, o medo. Para Nietzsche, a arte está além do bem e do mal, além do pessimismo e do otimismo, e, em todos os tempos mais difíceis, é o que faz com que a vida seja digna de ser vivida (NIETZSCHE F. , 2002).
Beleza, nesse período do pensamento de Nietzsche, é a afirmação da efemeridade, da finitude, do corpo, do desejo. É um principio essencialmente arraigado aos aspectos necessários do mundo: morte, dor, alegria, prazer. É o próprio caráter do que é inevitável que passa a ser entendido como belo, porque a beleza abarca agora o monstruoso. A medida e o caos são apenas aspectos diferentes de uma mesma força.
Trata-se então embriagar-se com a própria vida e não de transcendê-la, de amar os abandonos e não de fugir deles. Na visão nietzcheana, os gregos talvez soubessem muito bem cantar e dizer com Drummond, que o ser amoroso, a coisa, a arquitetura, sozinha, em rotação universal, não pode outra coisa, senão amar e desamar.

[...] levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleíne. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreendê-Ia?
(PROUST, 2002)

Amores não platônicos, não-edipianos, um amor como estado, como relação entre corpos. Met-amor-foses. Espinosa concebia o amor como alimentação, e também concebia a alimentação como amor.
Gilles Deleuze aprende com Proust que existem vários tipos de signos, e a cada tipo deles correspondem formas de pensamento. Há os signos mundanos, que são vazios e estão ligados a uma repetição ritual.
Há também os signos do amor. Amar é individualizar alguém pelos signos que porta e emite. É o ciúme que move o intérprete na busca por decifrar as mentiras. Existem ainda os signos das impressões ou qualidades sensíveis. Uma qualidade sensível gera uma felicidade estranha e imediata, obrigando aquele que a percebeu a buscar seu sentido.
Cada um desses sistemas de signos gera um tipo de experiência e aprendizado diferente. A memória involuntária age sobre os signos sensíveis. As qualidades sensíveis são apreendidas como signos, que solicitam, algumas vezes, a memória involuntária e outras, a imaginação. Os signos sensíveis, que se explicam pela memória, são parte da aprendizagem para chegar à interpretação dos signos de arte.
A memória involuntária determina uma relação entre dois objetos completamente diferentes e os retira das contingências do tempo histórico, revelando sua essência. Cada tipo de signo corresponde também há um tempo, por isso Deleuze (1987, p. 23) afirma que, nessa obra, o tempo é plural. Existem tempos de tamanhos e formas diferentes, que não se desenvolvem no mesmo ritmo. Os signos mundanos remetem ao tempo que perdemos, os amorosos ao tempo perdido. Os sensíveis fazem reencontrar o tempo, no tempo perdido. Os da arte, únicos que não são materiais, trazem o tempo reencontrado, tempo original, absoluto, que contêm todos os outros. Esses são os tempos privilegiados por cada signo, o que não significa que os diferentes tipos de signo não participem das outras dimensões do tempo. É no tempo reencontrado que todas as dimensões do tempo se unem e se chega à verdade que corresponde a cada uma.
A arte encarna, segundo Deleuze, a essência entendida como diferença. Constitui a individualidade, a subjetividade, pois a diferença última e absoluta define-se pela singularidade de um ponto de vista. O número de artistas corresponde ao número de mundos a nossa disposição. A lembrança encontra-se num plano mais baixo do que a arte, pois revela a verdade diferencial ou a essência de um lugar, de um momento e não um ponto de vista único (DELEUZE, 1987, p. 75). Ela dá uma imagem instantânea da eternidade, que é insuportável e não dura mais do que um breve instante, não oferecendo a possibilidade de descoberta de sua natureza (DELEUZE, 1987, p. 77). É muito intensa e pouco extensa, diferente da arte que conjuga uma grande intensidade com uma grande extensidade.
Sua concepção moderna e nova da reminiscência é de uma cadeia associativa heteróclita, que só é unificada por um ponto de vista criador. Para Deleuze (1970, p.166), o que é novo em Proust não é a existência dos instantes privilegiados de êxtase como o da Madeleine, a literatura está cheia deles, mas o fato de que ele produz tais instantes e de que esses instantes se tornam efeito de uma máquina literária.
Máquinas de amar e desamar. Máquinas inertes que só o sofrimento as põe em movimento. Quem sabe tudo isso seja um movimento de dês-representar o amor, de perceptos e afectos. O amor e desamor como transitoriedade, inconstância e fluidez, amor como abandono. Desamar uma arquitetura, para amar outra, e desamar, e amar...

Fragmento do texto de qualificação da tese de doutoramento: Arquiteturas do Abandono, desenvolvida junto ao PROPAR/UFRGS, orientada pelo Prof. Fernando Fuão e qualificada no dia 18 de junho de 2009.

O que são arquiteturas do abandono?

As arquiteturas do abandono compreendem desde edificações desabitadas, ruínas, restos de construção como também favelas, resíduos, sujeitos excluídos e tudo que até o desprendimento da matéria poderá nos levar a sentir e a pensar.
Num primeiro momento, apenas uma casa abandonada, em qualquer lugar, vizinha a tantas outras, nossa vizinha. Por ela, passamos todos os dias, caminhamos pela rua, a qual também acumula a sujeira, os restos, o capim. Tudo ao redor dessa casa, saindo pelas frestas, ruindo o reboco. A casa lar que antes abrigava uma família, agora se abre aos desabrigados, aos vagabundos, aos bandidos. Abandona-se ao bando.
Uma fábrica abandonada ou uma fábrica que abandonou muitos, uma enorme massa construída, onde o trabalho parou, mas sente-se ainda o movimento dos operários e o som das máquinas. Das máquinas enferrujadas que não produzem mais nada, apenas as carcaças envoltas em teias de aranha, recoberta por muita poeira. A poeira que entra pela boca, que resseca, que nos cega a vista, que esfuma. Fábrica abandonada por todos, mas que deixa toda a sujeira para trás, dos restos radioativos que podem provocar doenças, até os resíduos que servem de ganha pão para outros. Tudo arruinando e curando: fábrica, máquinas, resíduos, pessoas.
Todo o resíduo e entulho podem escorrer, migrar de um lugar para outro, pingar, deixar-se levar, contaminar o que não é abandonado, assim como o movimento de abandonar, de deixar alguma coisa em detrimento de outra. No edifício, a função vai embora e fica a forma abandonada.
Matar ou curar. Finito e infinito ao mesmo tempo. O tempo dos abandonos pode ser longo como o de uma ruína ou rápido como o de uma implosão. Difícil de ser medido e quantificado. Tudo pode ocorrer numa fração de segundos ou lentamente, como se não passasse de uma longa espera. Abandonar é largar a deterioração ao apodrecimento, ao mofo.
Também um resto de parede que teima em ficar de pé, que teima em permanecer. Mesmo com a chuva e o vento que lavam, dentro e fora, teimem em abatê-la. Uma ruína, um resto arruinado, não aquela ruína histórica, mas uma ruína fruto da supressão da própria história. Uma superfície arenosa e abandonada, transformada em deserto em meio à vida cotidiana das cidades.
Uma cidade é repleta de abandonos, por todos os lados, e de abandonados também. Eles estão ali perambulando pelas ruas, pelas calçadas, adentrando edifícios abandonados, encontrando-se, cara a cara conosco, Ás vezes desviamos, pulamos sobre eles, os abandonados cheiram mal, faltam-lhes dentes, e todos os objetos de consumo que tanto ansiamos.
O campo de ação das arquiteturas do abandono é amplo e, muitas vezes, caótico, abarca a matéria e a imatéria. Abandonamos materialidades, prédios, ruínas, restos, objetos, coisas, tudo o que possamos tocar, roubar, quebrar ou assassinar. Tudo muito elementar, muito óbvio.
No entanto, abandonos são também imateriais, do campo, do que não podemos mensurar. O abandono imaterial é do campo dos sentidos, dos desejos ou das sensações. Só há abandono material, porque há abandono imaterial, um se alimenta do outro. É corpo, é alma. As arquiteturas materiais do abandono podem ser as forças que nos sacodem para os abandonos imateriais. Como nas artes visuais ou na música, que atravessam nossos corpos. Abandonos também são capazes de desencarnar dos corpos arquitetônicos e habitar a fronteira, o escape, a fuligem.